sexta-feira, 6 de maio de 2016

Peter Sloterdijk e a frase de Nietzsche sobre a música.





“Onde estamos quando escutamos música?” A resposta a essa pergunta é motivo para Peter Sloterdijk traçar, em resumo máximo, o trajeto da filosofia contemporânea: “(…) expulsar as quimeras da subjetividade absoluta em favor de uma inteligência personalizada. Existencialidade em lugar de substancialidade; ressonância em lugar de autonomia; percussão em lugar de fundamento”.(1)

O que se diz acima é de uma ousadia enorme, mas é exatamente isso que a filosofia contemporânea tem feito, respectivamente: contra Descartes, enfia-se um sujeito como nome, RG, CIC, sutiã e cabelo nas virilhas; contra Aristóteles (e Descartes), põe-se a vida cotidiana enlameada de mais vida cotidiana; Beatles no lugar de Kant; tambores no lugar do Gigante Atlas, o sustentador do mundo.

Esse projeto escandaliza. Não à toa o senso comum, mesmo altamente escolarizado, às vezes olha para todos nós, os que lidam com filosofia contemporânea, acusando-nos de estarmos longe da filosofia. Pensam que os jovens educados por nós não saberão os clássicos. Mas, ao contrário, queremos que os jovens amem os clássicos, mas saibam que estamos agora com outras possibilidades.

“Onde estamos quando escutamos música?” Essa pergunta tem a ver, como Sloterdijk nota, com a de Hannah Arendt “onde estamos quando estamos pensando?”; e também com a dele mesmo, “onde estamos quando estamos no mundo?” Trata-se aí da busca de uma narrativa ontológica até então não construída. Temos sido fã dos olhos, da visão, ao menos em filosofia. A filosofia ou não tem orelhas ou as esconde. Afinal, orelhudo não é sinônimo de inteligência, muito pelo contrário! Então, se a filosofia cultiva o olhar e as metáforas das luzes, da visão, ela nos obriga a colocar tudo a uma certa distância – isso é ser inteligente e metódico. Ver bem é ver a uma certa distância. Impõe-se aí uma situação objetivante e, no limite, coisificante. Assim, o pensar e até o estar no mundo podem se assemelhar a essa situação de “estar a certa distância” – colocar o conteúdo do que se pensa e o conteúdo de si mesmo em um ponto ideal. Mas, segundo Sloterdijk, a música não vai à esquina, ela está onde está o sujeito ouvinte e este está onde a música está. Esse modelo de relação é completamente diferente do modelo de relação imposto pela visão, que no máximo chega ao intersubjetivismo, algo da cantilena de Habermas. Mas, com Sloterdijk, trata-se de ater-se a uma filosofia do entre, do meio, do que se coloca como simbiótico.

Com um pouco de imaginação, podemos retomar Descartes e vê-lo em uma situação inusitada. Ele se livra de todas as sensações para poder ficar apenas com o pensamento. Apenas cogita. O cogito se impõe como o que existe porque é cogito, ou seja, pensamento que funciona pensando, e isso mesmo que queira negar-se – para tal tem de continuar pensando. Mas no silêncio do pensamento há mesmo o silêncio absoluto? Ou há o ouvir as palavras do pensamento. O pensamento é a conversa da alma consigo mesma, dizia Platão. Mas como? As palavras não devem ser ouvidas? É possível pensar, o que fazemos com a linguagem, sem ouvir as palavras? Se Descartes tivesse prestado mais atenção, não concordaria estar no interior do som ao mesmo tempo em que este está em seu interior?

Não aprendemos a escutar após nascer. Escutamos antes, e de diversas formas: primeiro por vibrações do liquido amniótico e pela bolsa placentária ganhamos a sinestesia do som. Tanto é verdade que um bebê surdo, ao escutar por meio de aparelhos, sorri, se o som é agradável. Não se espanta. É como se já tivesse recebido o som antes e aprendido a aprova-lo ou não, evitando o barulho ruim. Efetivamente assim ocorreu no útero, onde se criaram as condições sinestésicas para que o feto “soubesse” ou que é som, mesmo que depois, por algum problema, seu ouvido não tenha se desenvolvido a contento. Há algo como o som no lugar em que pensamos e estamos – somos nós; e há algo em nós quando pensamos e estamos – o som da palavra. As relações uterinas dos sons não são da ordem de sujeito e objeto, mas de simbiose, interpenetração e, é claro, posterior ressonância. Ressonância antes que autonomia. Somos seres autônomos de modo não absoluto, nem mesmo de modo relativo segundo o modelo de átomos individuais em um clube liberal, mas como peças que estão sempre em ressonância. Na fala de Martin Buber: as crianças já aparecem com o “instinto de relação”.

Sloterdijk cita Cioran e isso nos faz compreender seu ponto de chegada e partida: ‘Carregamos conosco toda a música: lá nos mais profundos estratos da memória. Toda a música pertence à reminiscência. No tempo em que não possuíamos nome algum, deveríamos já ter ouvido tudo’. (2)

Cada um de nós está antes de tudo na música, se pensando – fomos feitos assim! A filosofia então se encaminha para esse modelo na qual a música dá as pistas, não somente os olhos. Ambos, contemporaneamente, estão com a música. Talvez agora possamos compreender mesmo a frase de Nietzsche “sem música a vida seria um erro”. Não se trata então de uma frase que adverte para que tenhamos música, mas uma frase de constatação, de descrição ontológica.

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