Mas, do que se trata a aporia para Derrida? Do ponto de vista lógico, pode-se dizer que uma aporia é uma contradição. Isto é, uma violação do princípio de não contradição elaborado na sua formulação mais canônica na Metafísica de Aristóteles. Em Força de Lei, Derrida chega a dizer que a desconstrução possui um “aspecto demonstrativo e aparentemente não histórico dos paradoxos lógicos-formais.” (Derrida, 2010, p. 41). Nesse mesmo texto, Derrida elege a palavra “aporia” para descrever esses “paradoxos logico-formais”: Ele diz: “Trata-se de um único potencial aporético que se distribui infinitamente.” (Derrida, 2010 p. 41).
O caminho lógico-formal de desenvolvimento da aporia, não é, todavia, o escolhido por Derrida em sua abordagem da aporia. O autor prefere desenvolver a dimensão “patética” oriunda dessa situação. Como é dito tanto em Força de Lei (1984) como Aporias (1992), o termo grego “a- poria” (a- alfa privativo/ poros- caminho, passagem) indica uma ausência de passagem, uma impossibilidade de se tomar um caminho.
Derrida diz: “Diaporeo é o termo de Aristóteles; ele significa: “Eu estou emperrado [dans l'embarras], Eu não consigo sair, Eu não posso fazer nada." (Derrida, 1993, p. 33). A essa situação de “não poder fazer nada” Derrida atribui uma infinidade de casos em sua obra e diz: “Eu me rendi à palavra aporias, no plural” (Derrida, 1993, p. 31).
Toda essa diversidade de casos não impede, no entanto, que Derrida admita haver uma regularidade formal nas ditas aporias. Ele diz: “aconteceu em vários contextos diferentes, mas como uma regularidade formal” (Derrida, 1993, p. 32) [meu grifo]. No mesmo texto, Derrida diz que experiência da aporia ou do “Eu não consigo sair,” pode ser entendida de três maneiras (Derrida, 1993, p. 44-48). Seriam elas:
(a) a aporia provém de uma barreira, uma fronteira que não se pode atravessar. O exemplo de Derrida é a guerra: quando todas as passagens são bloqueadas e não se pode passar salvo por senhas e palavras chaves misteriosas. (shibboleth).
(b) a aporia provém do fato de que todas as fronteiras são passíveis de serem atravessadas, que todas as barreiras são dissolvidas e transponíveis. O exemplo de Derrida é a dissolução da separação entre a minha casa (chez moi) e da casa do outro (chez l’autre).
(c) a aporia provém da ausência de algo como uma “passagem, passo, caminhada, marcha, deslocamento, ou re-deslocamento, uma kinesis em geral” (Derrida, 1993, p. 21). Haveria uma ausência das condições topográficas das quais as duas outras aporias derivariam. O exemplo de Derrida é o que o autor chama de “evento”: O advento do evento não pode ser determinado pela ultrapassagem ou não ultrapassagem de bordas ou fronteiras. Ele não pode ser localizado espacialmente.
A aporia descrita em (a) pode ser comparada ao modelo que Protevi (2001), ao desenvolver uma leitura “desconstrutiva” sobre a AIDS, descreveu como o paradigma da virologia. Para o autor essa ciência é baseada na suposição de bordas rigidamente marcadas entre o fora e o dentro do organismo.
O vírus é um agente, por definição externo ao organismo que atravessaria sua fronteira como um invasor estrangeiro para desorganizar a ordem prévia desse organismo. A virologia poderia ser descrita, portanto, a partir do modelo da aporia (a) no qual Derrida toma a guerra como exemplo.
Coincidentemente ou não, o modelo da guerra também é usado por Protevi na sua descrição da virologia: “o modelo de guerra virótico, no qual a tarefa é a defesa das tropas contra o inimigo atravessando as paredes, é relativamente tranquilizador.” (Protevi, 2001, p. 102).
Protevi ressalta como esse “modelo de guerra virótico,” é o modelo dominante na interpretação das causas da AIDS, uma vez que a hipótese mais difundida e patrocinada é a da infecção pelo vírus HIV. No âmbito do que o autor chama de “virologia,” podemos encontrar uma oposição clara entre, por um lado defesa do organismo, e, por outro, ataque contra o organismo. A virologia seria um discurso que põe em movimento uma lógica dicotômica no qual os agentes seriam facilmente reconhecíveis. Protevi desenvolve seu diagnóstico na passagem seguinte:
Nesse quadro, o vírus vem de fora, rompendo as paredes que deveriam separar o corpo unitário de seu oposto, do mundo exterior. O corpo é visto como uma interioridade encerrada por uma barreira protetora, uma fronteira. De acordo com o imaginário cultural oposicional, as paredes idealmente mucosas e sem costura são, de fato, frágeis, com tendência a pequenos rasgos invisíveis, abrindo o interior a um exterior que deveria se manter exterior. A resposta a essa degeneração factual da separação ideal é policiar as bordas do corpo político somático. As mensagens são bem conhecidas até agora: separar o dentro do fora. Evitar misturar os famosos fluidos corporais. A verdade sobre a AIDS é uma limnologia, um discurso sobre as bordas: mantenha seus fluidos para você! Não traga sangue estrangeiro para dentro! Limpe suas agulhas, tome conta da proveniência de seu sangue: regule a pureza das substancias externas, se você precisa- por perversidade ou ordem medical- incorporá-las. Mantenha o seu pênis e seus fluidos para você mesmo! O preservativo mantem o fora, até quando está dentro, fora. Mantenha seu clitóris e secreções vaginais para você! A barragem dental mantem o dentro, mesmo quando está fora, dentro. Látex é vida, troca de fluidos, morte. (Protevi, 2001, p.101).
Contra o modelo virótico por infecção do HIV, o autor defende uma imunologia para a qual: “a questão não é nunca a de dentro ou fora, mas de uma distribuição econômica entre entrada, assimilação ou rejeição e excreção. O corpo unitário, presente a si é explodido num sistema de troca.” E para Protevi: “a regulação dessa troca é o trabalho do sistema imunológico” (Protevi, 2001, p. 102).
A partir desse “diagnóstico” percebe-se que o modelo imunológico descrito por Protevi não poderia ser descrito pela aporia (a) a partir da qual descrevemos a virologia. Os processos imunológicos e, mais especificamente, o efeito autoimunitário resultante desse processo, parece poder ser melhor descrito a partir da aporia (c).
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