sexta-feira, 6 de maio de 2016

Derrida e a noção de aporia Pt 2

Na aporia (c), as oposições, por mais que elas existam (não se está pondo em cheque sua existência) não podem ser localizadas – o que condiz justamente com o efeito da autoimunidade. A saber: tornar as fronteiras entre dentro e fora, anticorpo e antígeno, amigo e inimigo não localizáveis, complicar a linha divisória que mantém as oposições estáveis. Se aquilo que nos protege também nos destrói, localizar aonde o amigo e o inimigo se situam torna-se, no mínimo complicado.

     Não podemos confundir, no entanto, essa situação aporética dada por (c) com a descrita em (b). Não se trata de dizer que a autoimunidade provém ou deriva de uma dissolução das fronteiras e de um livre passe para ir e vir. Fronteiras continuam a existir, elas não são diluídas, mas apenas não imediatamente reconhecíveis. A autoimunidade complica a identificação “nominal” e “espacial” dos agentes, gerando uma situação que Protevi narra como de espionagem e contra espionagem:
A tarefa do sistema imunológico é a de leitura, espionagem e contra-espionagem. A fase final da doença autoimune — especialmente quando essa mira o sistema imunológico ele mesmo (a posição de Root-Bernstein em Rethinking AIDS) — é a de uma tarefa impossível de desfazer os erros cometidos pela polícia interna que confundiu polícia interna com agentes estrangeiros fantasiados de polícia interna dedicada a seguir os agentes estrangeiros como polícia interna... Suspeita é levada ao limite; hermenêutica ao extremo. (Protevi, 2001, p.102).
     O modelo da espionagem e contra espionagem, parece, então, se adequar a aporia (c) descrita por Derrida assim como o modelo da guerra se adequa a aporia (a). Se a autoimunidade pode ser entendida como um ataque às próprias defesas, processos antagônicos podem acontecer ao mesmo tempo no interior de um organismo. Com isso, o estabelecimento de táticas de guerra confiáveis fica comprometido dada a possibilidade sempre aberta de que anticorpos se transformem em auto anticorpos.
     Cabe-nos agora perguntar como essa identificação ajuda a pensar a autoimunidade como estratégia para pensar a vida de outro modo. Na última seção foi dito que “pensar de outro modo a vida, não pode ser uma oposição conceitual à vida enquanto imunidade absoluta, mas tão somente uma alternativa entre aspas a essa vida.” Tal alternativa entre aspas parece ser melhor entendida como uma aporia auto imune, uma vez que essa desconstrói e auto imuniza o conceito de vida enquanto imunidade absoluta sem lhe opor dicotomicamente outro conceito.
     A autoimunidade precisa da vida enquanto imunidade absoluta. Ela não pode existir em seu exterior e lhe declarar guerra. Ela é uma espécie de doença crônica que apenas pode existir à medida que a primeira começa a se desenvolver. Isto é: a autoimunização é “fruto” de uma tentativa de imunização, de proteção e defesa.
     Se essas tentativas não são realizadas, também não se poderia dizer que a vida enquanto imunidade absoluta poderia “voltar contra si mesma” numa reação autoimunitária. Há, portanto, uma relação de mútua implicação entre os processos autoimunitários e a tentativa de formação de uma vida enquanto imunidade absoluta.
     Essa “mútua implicação” pode ser vislumbrada através da auto-desconstrução que a aporia autoimune provoca na vida enquanto imunidade absoluta na impossibilidade de se pensar outro conceito de vida. Percebe-se, portanto, que os ditos processos autoimunitários podem ser entendidos como a estratégia derridiana para pensar a vida de outro modo na impossibilidade de pensar outro conceito de vida. Isso se justifica porque esses processos não conduzem nem à positividade de outro conceito de vida (descrevem apenas uma doença que ataca a vida) nem à negatividade absoluta que a vida enquanto imunidade absoluta produz (eles não conduzem à negação da passagem do tempo e à morte absoluta).
     Na impossibilidade de se estabelecer outro conceito de vida, algo acontece, no entanto, a esse conceito. Esse “algo acontece” problematiza a tomada de partido apressada quanto às identidades do “invasor” e do “protetor” e mesmo das delimitações do meu interior e o meu exterior. A aporia autoimune parece fazer da oposição dicotômica dada pela metáfora da guerra virótica apenas um primeiro cenário a ser investigado. Permaneceria sempre aberta a possibilidade de encontramos um segundo cenário dentro desse primeiro, no qual invasor e protetor trocariam de papéis.

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